Andei na Escola Valsassina, no grande palacete da António Augusto Aguiar que fora do Conde da Lousã, do primeiro ao quinto ano do liceu. Fui fazer o terceiro ciclo (sexto e sétimo anos) ao Pedro Nunes mas no começo do sétimo ano o pai foi trabalhar para a Organização Mundial da Saúde, como professor na faculdade de medicina da universidade de Kabul e a família mudou-se com ele. Quando voltei para Portugal entrei para a Escola de Belas Artes de Lisboa (mais tarde, tirei por fora ciências naturais para poder matricular-me em Medicina). Assim, dos seis anos de liceu que fiz, cinco foram passados na Valsassina.
Não sou muito convivial nem dado a ritos tribais – ao ponto de, num dos meus primeiros anos de Oxford, ter respondido a carta de compatriota que não conhecia, lá estava a doutorar-se em física e queria fundar um clube informal de portugueses frequentando a universidade para o qual me convidava, que as razões que me tinham trazido a Oxford não eram necessariamente as mesmas que me levavam a escolher com quem jantava, pelo que lamentava ter de recusar o convite. Sei por isso que a boa memória da Valsassina que até hoje levo gravada em mim não se deve a exaltado sentido gregário ou a nostalgia de pertença colectiva da minha parte. Resulta da reacção natural de um adolescente a duas circunstâncias felizes: a da escola ser boa e a de me terem lá tratado bem.
Havia em casa dos meus pais grande gosto por cultura e conhecimento, dedicação quase calvinista ao cumprimento do dever, incluindo obrigações simples de honestidade (Nunca pus o rabo no automóvel da direcção geral de saúde que levava o pai ao trabalho, embora muitas vezes saíssemos de casa à mesma hora e a Escola ficasse no caminho. Os carros de funções não eram para transportar meninos). Vivíamos na Elias Garcia, a mãe que viera há pouco tempo de Évora tinha medo das escolas públicas, neste caso do liceu, a Valsassina era perto mas lembro-me de outros colégios haverem sido considerados. Lembro-me também de visitas dos pais ao palacete Lousã e de trocas de correspondência, antes de eu lá ser admitido no primeiro ano liceu e o mano João na terceira classe da escola primária.
Gostei dos seis anos que lá passei. Repeti o terceiro por ter adoecido no ano em que o João, para orgulho da direcção da Valsassina, teve a nota mais alta de Portugal no exame de admissão ao liceu. Foi o único ano em que houve notas. O 19 na pauta afixada no Liceu Camões era apontado a outros pais pelo Senhor Heitor, não se sabia ainda de ter sido o único no país, enquanto explicava que o irmão – eu – teria certamente tido também nota brilhante se a saúde o tivesse deixado fazer o exame do 1° ciclo. (O Senhor Heitor, genro dos fundadores, Frederico e Susana Valsassina, era figura central da administração da Escola e durante os meus primeiros meses de aluno vivi convencido de que Heitor era título de uma função académica tal como Professor, Reitor ou Director).
Eu, por meu lado, gostava da Escola. Um professor houve que ficaria como o melhor que me lembro de ter tido, desde a mãe em casa na Ilha Terceira e da D. Maria Prego na sua escolinha em Évora até John Campbell orientador do meu doutoramento em Oxford: o Dr. Avelino Cunhal que nos ensinava magistralmente História, mas vários outros houve com quem muito aprendi quer das matérias a estudar quer de como estar na vida. O Dr. Moura Diniz, de português e latim, que disse numa aula que qualquer pessoa decente deveria assinar as listas do MUD, afirmação que hoje seria intromissão política inaceitável mas nessa altura soou como um acto insólito de coragem democrática; o Major David dos Santos, de matemática, que estivera na guerra em França, soltava “Jané!” (J’en ai) de tédio, e dizia às vezes a aluno chamado ao quadro: “Oh Senhor, é bom ser burro mas não tanto!” ou o Dr. Miranda de Lemos, o mais velhinho de todos que nos marcava erro quando escrevíamos hidrogénio sem y. (Na altura tinha pena respeitosa dele; hoje que passei a sua idade e que o Expresso lembra todas as semanas que escrevo segundo a ortografia antiga, compreendo-o melhor).
Acima dos Professores, do Senhor Heitor, dos contínuos, das cozinheiras e das criadas – a Escola tinha internato – estavam o Director, Frederico Valsassina e a D. Susana, sua mulher. Eu não sabia, durante os meus anos na Escola, do papel pioneiro que ambos tinham tido no estabelecimento de ensino secundário competente em Lisboa mas sentia-se que deles emanava o que eu chamaria a alma da Escola. Figuras tutelares com quem se ia falar às vezes por questões pessoais, a sua presença era a pedra de fecho da abóbada de ilustração intelectual e preparação moral para a vida que nos abrigava na António Augusto Aguiar. Deixaram-me marca. Quando ele morreu já eu estava no Pedro Nunes; o pai escreveu uma carta ao Reitor a pedir dispensa para mim na tarde do enterro. Foi o primeiro morto que teve directamente a ver comigo.
Ainda hoje tenho amigos feitos na Valsassina e na festa de aniversário do Bartolomeu Cid dos Santos, na casa dele em Sintra, no sábado mais próximo do dia 24 de Agosto, até ele morrer há três anos, cantávamos sempre o Hino da Escola (composto salvo erro pelo Maestro Cruz Brás que nos ensinara canto coral). O Bartolomeu e eu não tínhamos andado no mesmo ano mas as nossas famílias eram amigas, a casa dele era duas casas acima da Escola e passei nela muitas tardes depois das aulas. Outro amigo intenso da minha adolescência valsassínica é o Hugo Gil Ferreira, grande cabeça e grande coração, que vivia do outro lado da Avenida no 1º direito do número 165 e que eu também visitava muito. Ficaram-me gravadas na memória duas imagens dele a abrir-me a porta de casa, uma trágica - “O meu pai e o meu tio Raul morreram em Angola num desastre de avião” – e outra, anos depois, triunfal – “Sou amante de uma mulher casada!” Passei muito tempo sem o ver e nos últimos anos encontro-o às vezes no Verão na casa de Tavira do Henrique Delgado Martins.
O Henrique era meu companheiro de carteira; quase vinte anos depois durante o seu exílio político ficou meu compadre em Oxford onde lhe nasceu a filha Bárbara, minha afilhada arquitecta; num ensaio sobre valores da sociedade portuguesa que lhe dediquei chamei-lhe “homem de honra”, que é o que ele é; mais velho quase um ano está em muito melhor forma do que eu (já não pega touros mas ainda monta a cavalo e não se lhe vê cabelo branco) e aplica a sua sabedoria ortopédica e a sua generosidade a tentar fazer o meu corpo confrontar com garbo preguiça e idade. Não se pode ter amigo melhor.
Ele e o Hugo fiquei a devê-los à Valsassina - e o Bartolomeu em grande parte.
A Escola continua noutro lugar da cidade, chama-se agora Colégio, desde a morte do Fifas já lá não conheço ninguém, nunca lá fui nem sei se ainda lá cantam o Hino da Escola. Espero que além de continuar a educar e instruir inculque ainda nos alunos o ‘esprit de corps’ que nos inculcou a nós. Não era um espírito fanfarrão ou agressivo mas levávamo-nos a sério. Não éramos melhores do que ninguém mas ninguém era melhor do que nós.
Não sou muito convivial nem dado a ritos tribais – ao ponto de, num dos meus primeiros anos de Oxford, ter respondido a carta de compatriota que não conhecia, lá estava a doutorar-se em física e queria fundar um clube informal de portugueses frequentando a universidade para o qual me convidava, que as razões que me tinham trazido a Oxford não eram necessariamente as mesmas que me levavam a escolher com quem jantava, pelo que lamentava ter de recusar o convite. Sei por isso que a boa memória da Valsassina que até hoje levo gravada em mim não se deve a exaltado sentido gregário ou a nostalgia de pertença colectiva da minha parte. Resulta da reacção natural de um adolescente a duas circunstâncias felizes: a da escola ser boa e a de me terem lá tratado bem.
Havia em casa dos meus pais grande gosto por cultura e conhecimento, dedicação quase calvinista ao cumprimento do dever, incluindo obrigações simples de honestidade (Nunca pus o rabo no automóvel da direcção geral de saúde que levava o pai ao trabalho, embora muitas vezes saíssemos de casa à mesma hora e a Escola ficasse no caminho. Os carros de funções não eram para transportar meninos). Vivíamos na Elias Garcia, a mãe que viera há pouco tempo de Évora tinha medo das escolas públicas, neste caso do liceu, a Valsassina era perto mas lembro-me de outros colégios haverem sido considerados. Lembro-me também de visitas dos pais ao palacete Lousã e de trocas de correspondência, antes de eu lá ser admitido no primeiro ano liceu e o mano João na terceira classe da escola primária.
Gostei dos seis anos que lá passei. Repeti o terceiro por ter adoecido no ano em que o João, para orgulho da direcção da Valsassina, teve a nota mais alta de Portugal no exame de admissão ao liceu. Foi o único ano em que houve notas. O 19 na pauta afixada no Liceu Camões era apontado a outros pais pelo Senhor Heitor, não se sabia ainda de ter sido o único no país, enquanto explicava que o irmão – eu – teria certamente tido também nota brilhante se a saúde o tivesse deixado fazer o exame do 1° ciclo. (O Senhor Heitor, genro dos fundadores, Frederico e Susana Valsassina, era figura central da administração da Escola e durante os meus primeiros meses de aluno vivi convencido de que Heitor era título de uma função académica tal como Professor, Reitor ou Director).
Eu, por meu lado, gostava da Escola. Um professor houve que ficaria como o melhor que me lembro de ter tido, desde a mãe em casa na Ilha Terceira e da D. Maria Prego na sua escolinha em Évora até John Campbell orientador do meu doutoramento em Oxford: o Dr. Avelino Cunhal que nos ensinava magistralmente História, mas vários outros houve com quem muito aprendi quer das matérias a estudar quer de como estar na vida. O Dr. Moura Diniz, de português e latim, que disse numa aula que qualquer pessoa decente deveria assinar as listas do MUD, afirmação que hoje seria intromissão política inaceitável mas nessa altura soou como um acto insólito de coragem democrática; o Major David dos Santos, de matemática, que estivera na guerra em França, soltava “Jané!” (J’en ai) de tédio, e dizia às vezes a aluno chamado ao quadro: “Oh Senhor, é bom ser burro mas não tanto!” ou o Dr. Miranda de Lemos, o mais velhinho de todos que nos marcava erro quando escrevíamos hidrogénio sem y. (Na altura tinha pena respeitosa dele; hoje que passei a sua idade e que o Expresso lembra todas as semanas que escrevo segundo a ortografia antiga, compreendo-o melhor).
Acima dos Professores, do Senhor Heitor, dos contínuos, das cozinheiras e das criadas – a Escola tinha internato – estavam o Director, Frederico Valsassina e a D. Susana, sua mulher. Eu não sabia, durante os meus anos na Escola, do papel pioneiro que ambos tinham tido no estabelecimento de ensino secundário competente em Lisboa mas sentia-se que deles emanava o que eu chamaria a alma da Escola. Figuras tutelares com quem se ia falar às vezes por questões pessoais, a sua presença era a pedra de fecho da abóbada de ilustração intelectual e preparação moral para a vida que nos abrigava na António Augusto Aguiar. Deixaram-me marca. Quando ele morreu já eu estava no Pedro Nunes; o pai escreveu uma carta ao Reitor a pedir dispensa para mim na tarde do enterro. Foi o primeiro morto que teve directamente a ver comigo.
Ainda hoje tenho amigos feitos na Valsassina e na festa de aniversário do Bartolomeu Cid dos Santos, na casa dele em Sintra, no sábado mais próximo do dia 24 de Agosto, até ele morrer há três anos, cantávamos sempre o Hino da Escola (composto salvo erro pelo Maestro Cruz Brás que nos ensinara canto coral). O Bartolomeu e eu não tínhamos andado no mesmo ano mas as nossas famílias eram amigas, a casa dele era duas casas acima da Escola e passei nela muitas tardes depois das aulas. Outro amigo intenso da minha adolescência valsassínica é o Hugo Gil Ferreira, grande cabeça e grande coração, que vivia do outro lado da Avenida no 1º direito do número 165 e que eu também visitava muito. Ficaram-me gravadas na memória duas imagens dele a abrir-me a porta de casa, uma trágica - “O meu pai e o meu tio Raul morreram em Angola num desastre de avião” – e outra, anos depois, triunfal – “Sou amante de uma mulher casada!” Passei muito tempo sem o ver e nos últimos anos encontro-o às vezes no Verão na casa de Tavira do Henrique Delgado Martins.
O Henrique era meu companheiro de carteira; quase vinte anos depois durante o seu exílio político ficou meu compadre em Oxford onde lhe nasceu a filha Bárbara, minha afilhada arquitecta; num ensaio sobre valores da sociedade portuguesa que lhe dediquei chamei-lhe “homem de honra”, que é o que ele é; mais velho quase um ano está em muito melhor forma do que eu (já não pega touros mas ainda monta a cavalo e não se lhe vê cabelo branco) e aplica a sua sabedoria ortopédica e a sua generosidade a tentar fazer o meu corpo confrontar com garbo preguiça e idade. Não se pode ter amigo melhor.
Ele e o Hugo fiquei a devê-los à Valsassina - e o Bartolomeu em grande parte.
A Escola continua noutro lugar da cidade, chama-se agora Colégio, desde a morte do Fifas já lá não conheço ninguém, nunca lá fui nem sei se ainda lá cantam o Hino da Escola. Espero que além de continuar a educar e instruir inculque ainda nos alunos o ‘esprit de corps’ que nos inculcou a nós. Não era um espírito fanfarrão ou agressivo mas levávamo-nos a sério. Não éramos melhores do que ninguém mas ninguém era melhor do que nós.