Há sítios, momentos, pessoas que se nos entranham na pele e por cá ficam, ao abrigo da casa e pucarinho com que vamos alimentando a nossa memória colectiva. São traves do nosso ser, da nossa maneira de estar no mundo; são motor de vitórias e cajado com que amparamos as derrotas; são fonte das alegrias e tristezas que nos amassam a substância da vida. O Dr. Frederico Valsassina foi uma dessas vigas sobre as quais assentei o meu crescer!
Que hei-de dizer? Queria fazer uma homenagem digna do tesouro que recebi no Colégio. O meu poço das palavras quase seco… as lágrimas fingindo que não correm e, no entanto, lentamente e em surdina, desfaço-me nelas… o vazio destes dias fuscos de Maio a comer-me por dentro, apesar de o Sol brilhar e de os passarinhos continuarem a saltitar de ramo em ramo… lá, nesse jardinzinho que nos fez despontar para a vida. Tanto quanto este lancinante sentimento de culpa que me vai moer até ao fim dos tempos…
Sim, culpa! Uma culpa atroz e sacana, que nem sequer permite o contraditório ou a dúvida. Em Fevereiro, o meu querido Fifas, esse que agora me roubaram sem remissão, na resposta a um e-mail meu, escreveu: “Fico ansiosamente à espera de notícias tuas!”. Queria saber novas e trovas, imaginem só, da “minha” Sociedade Portuguesa de OVNIs, “de que tu eras o Ilustre presidente e que funcionava na sala junto ao Dr. Renato!” Do meu querido Renato, que me sorria esperança e alegria de viver… Passaram mais de 30 anos e o Fifas ainda se lembrava da minha pancada! Não respondi logo e, na estupidez desta vida que reservámos para nós, as horas transformaram-se em dias, os dias em meses consumidos pelo trabalho, e pelo cansaço, e pela apatia! E as palavras nunca chegaram a partir, era sempre “prá’ manhã”. Até que deixou de haver um amanhã… e ficou apenas uma dor surda, cavernosa, também ela atroz no seu gargalhar de mim, da minha incúria, do meu desleixo…
Sabem? Tive conhecimento da morte do Dr. Frederico por portas travessas... Vira-o em Novembro passado, são que nem um pêro acabadinho de colher e não resisti a dar-lhe dois beijinhos, assim como um afectuoso avô que se revê, com a alma em alvoroço, após uma longa viagem aos confins do Mundo. Foi no funeral do Pedro... e, nesse dia, chorei baba e ranho. Literalmente! Por isso, lembrando-se do meu descontrolado desconsolo, lágrimas e trovejante choro a brotarem-me das profundezas da carne, quiseram poupar-me a outro murro no estômago. Apenas no Domingo à noite (9 de Maio), de mansinho, a minha mãe se encheu de coragem e me sussurrou que a minha escola já não era tão linda como a guardava no coração… que uma luz (mais uma...) se tinha apagado na minha vida. Mas, esteja eu onde estiver, a fazer o que quer que seja, o Fifas será sempre o fiel jardineiro desse jardinzinho banhado de luz que cantávamos em pequenos - a luz do amor, da amizade, da esperança, da sabedoria, das lições de vida que não vêm nos livros!
Mais uma torrente de baba e ranho. Quando as nuvens começaram a esfiapar-se, não vão querer saber qual a primeira coisa que me veio à cabeça. Lembrei-me da Eduarda (ó pá, não me perguntem o apelido...). Uma menina franzina, destemida, vibrante de viver, olhos rutilantes de pantera naquele rosto com sabor a morango, caracóis perfeitos a contrastar com os meus, revoltos e desgrenhados... Enfim, já devem ter percebido que um puto de 12 anos andava no mundo da Lua e, à socapa, atirava para a carteira da Eduarda bilhetinhos amorosamente rabiscados.
Bom... parece-me que a Eduarda não gostou muito da brincadeira e vai, não vai, foi mesmo fazer queixa ao Fifas. Eu, na santa ignorância dos inocentes babados, continuava nas minhas sete quintas. Até ao dia em que, à porta da biblioteca, esbarro naquele gigante de bigode farfalhudo. Juro-vos: tive a sensação de que ia meter-me num pãozinho e comer-me de uma só dentada! Por aqueles dias e até as hormonas me começarem aos saltos, eu era bastante minorca. A agarrar-me o colarinho, o Adamastor crava em mim aquele olhar tenebrosamente sorridente e, numa voz doce, calma... bolas!, lembro-me como se fosse hoje: "Ouvi dizer que andas a mandar bilhetinhos à Eduarda! Bem... Se andasses a mandar bilhetes a rapazes era muito pior. E vais parar já com isso, está bem?" Eu, transido de vergonha por terem descoberto a minha afinal não tão secreta paixão, lá fui balbuciando que sim, que sim senhor, que seria tudo conforme Sua Excelência desejasse - ao mesmo tempo que ansiava por ter ali à mão um buraco bem fundo onde me enfiar. Os bilhetinhos, sim!, continuei a escrevê-los para, no momento seguinte, os amarfanhar de frustração antes de irem parar ao caixote do lixo.
E assim, sorrateiramente, como não quer a coisa, deu-me o Fifas uma lição que não vinha em nenhum dos compêndios de Matemática com que nos azucrinava o juízo: o respeito terno pela Mulher e que os nossos desejos apenas o são enquanto pontes para o Outro, nunca como imposições unívocas mas tão-só e apenas como promessas de futuro. Se isto não é um pai, um humanista, um homem com uma singular visão da vida aplicada à pedagogia…
Mais tarde, acho que no 10º ano, durante a entrega de um prémio literário organizado pelo Colégio, a avassaladora voz da Eduarda estarreceu a audiência com a leitura de um poema meu (que, diga-se de passagem, era bastante medíocre...). Em verdade vos digo: por uma vez, tive umas ganas danadas de apertar as goelas ao Fifas!
Querido Amigo, estejas onde estiveres, não te abespinhes comigo. Juro que foi só dessa vez!
"Anda cáááá!" E pronto, eis a biga de Júpiter sobre a minha pobre cabeça! Tenho quarenta e sete anos mas, no fundo, lá bem no fundo do meu Eu, nunca deixei de ser aquele puto que mandava (manda?...) bilhetinhos à Eduarda.
P.S. – Ah!, só mais uma coisa! Também há números que nos marcam para a vida. O meu foi o 183… Há coisas que não se esquecem… há coisas que permanecem em nós porque fazem parte dos melhores anos das nossas vidas! Ouvir ou ler esse número evoca amizades, rivalidades, traquinices, patifarias, arraiais de pancadaria, rebeldia, o diáfano perfume do crescer… e também umas lambadas bem merecidas ou o desgosto por aquela nota que raivosamente pensávamos ter arrancado ao nosso desajeitado conhecimento e que, de súbito, era um pífio resultado… naquele tempo em que os ter era motivo suficiente para vergonhas e choros.
Jorge Vargas, nº 183
Que hei-de dizer? Queria fazer uma homenagem digna do tesouro que recebi no Colégio. O meu poço das palavras quase seco… as lágrimas fingindo que não correm e, no entanto, lentamente e em surdina, desfaço-me nelas… o vazio destes dias fuscos de Maio a comer-me por dentro, apesar de o Sol brilhar e de os passarinhos continuarem a saltitar de ramo em ramo… lá, nesse jardinzinho que nos fez despontar para a vida. Tanto quanto este lancinante sentimento de culpa que me vai moer até ao fim dos tempos…
Sim, culpa! Uma culpa atroz e sacana, que nem sequer permite o contraditório ou a dúvida. Em Fevereiro, o meu querido Fifas, esse que agora me roubaram sem remissão, na resposta a um e-mail meu, escreveu: “Fico ansiosamente à espera de notícias tuas!”. Queria saber novas e trovas, imaginem só, da “minha” Sociedade Portuguesa de OVNIs, “de que tu eras o Ilustre presidente e que funcionava na sala junto ao Dr. Renato!” Do meu querido Renato, que me sorria esperança e alegria de viver… Passaram mais de 30 anos e o Fifas ainda se lembrava da minha pancada! Não respondi logo e, na estupidez desta vida que reservámos para nós, as horas transformaram-se em dias, os dias em meses consumidos pelo trabalho, e pelo cansaço, e pela apatia! E as palavras nunca chegaram a partir, era sempre “prá’ manhã”. Até que deixou de haver um amanhã… e ficou apenas uma dor surda, cavernosa, também ela atroz no seu gargalhar de mim, da minha incúria, do meu desleixo…
Sabem? Tive conhecimento da morte do Dr. Frederico por portas travessas... Vira-o em Novembro passado, são que nem um pêro acabadinho de colher e não resisti a dar-lhe dois beijinhos, assim como um afectuoso avô que se revê, com a alma em alvoroço, após uma longa viagem aos confins do Mundo. Foi no funeral do Pedro... e, nesse dia, chorei baba e ranho. Literalmente! Por isso, lembrando-se do meu descontrolado desconsolo, lágrimas e trovejante choro a brotarem-me das profundezas da carne, quiseram poupar-me a outro murro no estômago. Apenas no Domingo à noite (9 de Maio), de mansinho, a minha mãe se encheu de coragem e me sussurrou que a minha escola já não era tão linda como a guardava no coração… que uma luz (mais uma...) se tinha apagado na minha vida. Mas, esteja eu onde estiver, a fazer o que quer que seja, o Fifas será sempre o fiel jardineiro desse jardinzinho banhado de luz que cantávamos em pequenos - a luz do amor, da amizade, da esperança, da sabedoria, das lições de vida que não vêm nos livros!
Mais uma torrente de baba e ranho. Quando as nuvens começaram a esfiapar-se, não vão querer saber qual a primeira coisa que me veio à cabeça. Lembrei-me da Eduarda (ó pá, não me perguntem o apelido...). Uma menina franzina, destemida, vibrante de viver, olhos rutilantes de pantera naquele rosto com sabor a morango, caracóis perfeitos a contrastar com os meus, revoltos e desgrenhados... Enfim, já devem ter percebido que um puto de 12 anos andava no mundo da Lua e, à socapa, atirava para a carteira da Eduarda bilhetinhos amorosamente rabiscados.
Bom... parece-me que a Eduarda não gostou muito da brincadeira e vai, não vai, foi mesmo fazer queixa ao Fifas. Eu, na santa ignorância dos inocentes babados, continuava nas minhas sete quintas. Até ao dia em que, à porta da biblioteca, esbarro naquele gigante de bigode farfalhudo. Juro-vos: tive a sensação de que ia meter-me num pãozinho e comer-me de uma só dentada! Por aqueles dias e até as hormonas me começarem aos saltos, eu era bastante minorca. A agarrar-me o colarinho, o Adamastor crava em mim aquele olhar tenebrosamente sorridente e, numa voz doce, calma... bolas!, lembro-me como se fosse hoje: "Ouvi dizer que andas a mandar bilhetinhos à Eduarda! Bem... Se andasses a mandar bilhetes a rapazes era muito pior. E vais parar já com isso, está bem?" Eu, transido de vergonha por terem descoberto a minha afinal não tão secreta paixão, lá fui balbuciando que sim, que sim senhor, que seria tudo conforme Sua Excelência desejasse - ao mesmo tempo que ansiava por ter ali à mão um buraco bem fundo onde me enfiar. Os bilhetinhos, sim!, continuei a escrevê-los para, no momento seguinte, os amarfanhar de frustração antes de irem parar ao caixote do lixo.
E assim, sorrateiramente, como não quer a coisa, deu-me o Fifas uma lição que não vinha em nenhum dos compêndios de Matemática com que nos azucrinava o juízo: o respeito terno pela Mulher e que os nossos desejos apenas o são enquanto pontes para o Outro, nunca como imposições unívocas mas tão-só e apenas como promessas de futuro. Se isto não é um pai, um humanista, um homem com uma singular visão da vida aplicada à pedagogia…
Mais tarde, acho que no 10º ano, durante a entrega de um prémio literário organizado pelo Colégio, a avassaladora voz da Eduarda estarreceu a audiência com a leitura de um poema meu (que, diga-se de passagem, era bastante medíocre...). Em verdade vos digo: por uma vez, tive umas ganas danadas de apertar as goelas ao Fifas!
Querido Amigo, estejas onde estiveres, não te abespinhes comigo. Juro que foi só dessa vez!
"Anda cáááá!" E pronto, eis a biga de Júpiter sobre a minha pobre cabeça! Tenho quarenta e sete anos mas, no fundo, lá bem no fundo do meu Eu, nunca deixei de ser aquele puto que mandava (manda?...) bilhetinhos à Eduarda.
P.S. – Ah!, só mais uma coisa! Também há números que nos marcam para a vida. O meu foi o 183… Há coisas que não se esquecem… há coisas que permanecem em nós porque fazem parte dos melhores anos das nossas vidas! Ouvir ou ler esse número evoca amizades, rivalidades, traquinices, patifarias, arraiais de pancadaria, rebeldia, o diáfano perfume do crescer… e também umas lambadas bem merecidas ou o desgosto por aquela nota que raivosamente pensávamos ter arrancado ao nosso desajeitado conhecimento e que, de súbito, era um pífio resultado… naquele tempo em que os ter era motivo suficiente para vergonhas e choros.
Jorge Vargas, nº 183